O olhar do outro
A moça na bicicleta invejou a mulher no conforto do carro. A mulher do carro invejou a liberdade da moça na bicicleta.
O adolescente no skate aspirou o relógio do empresário ancião. O empresário ancião quis a juventude do skatista sem a preocupação com o tempo.
O menino com a pipa desejou o carro de controle remoto do garoto do parque. O garoto do parque desejou a habilidade de controlar o voo da pipa.
Quando se cruzaram no shopping, a jovem simples cobiçou o vestido caro que a madame elegante usava. A madame elegante cobiçou o shortinho descolado no corpo da jovem simples.
O estagiário novato saiu cedo e partiu para a faculdade, cogitando o cargo do chefe engravatado. O chefe engravatado cogitou a oportunidade de o novato escolher um trabalho que não o obrigasse a passar o dia de gravata.
O aluno aplicado quis ter o conhecimento do professor dedicado. O professor dedicado quis resgatar a inocência de quando era apenas um aluno aplicado e não tinha a obrigação de saber tudo.
Chegando do trabalho com a companheira, o homem esticou os olhos para o corpão da vizinha e achou que ela tinha um marido sortudo. A vizinha esticou os olhos para a mulher do homem, pensando que sortudo ele era por sua esposa bem-cuidada.
E cada um, na imprecisão de um olhar descuidado, descuidou de si. Desbotou-se diante do espelho que não refletiu o outro, mas a sua própria imagem sem retoques.
E, assim, todos, desejando a grama do vizinho, voltaram frustrados para casa, abandonando no limbo, do outro lado do espelho, a pessoa que realmente importava.