Artes literárias

Desassossegos da quarentena

Imagem de KLEITON Santos por Pixabay 

Trancou-se em casa com seu silêncio. Cerrou portas e janelas, encerrou contratos e adiou prazos. Espiou a rua pela fresta da cortina: os vizinhos também se trancaram, as ruas receberam apenas folhas dançantes trazidas pelo vento. As casas fingiam-se de mortas, espiando a coagida mansidão do lado de fora. A vida pareceu se calar alguns instantes.

No prédio de quatro andares onde morava, os corredores sussurravam palavras incompreensíveis e não mais os passos insistentes, incessantes, dissonantes. Desejou muitas vezes aquele silêncio, sim, desejou impacientemente. 

Sentou-se atenta e engoliu as mortes anunciadas pela TV. Então sentiu o medo sentar-se ao seu lado e se encolheu no canto do sofá para lhe dar lugar. Porém ele foi se instalando sorrateiro, arrastando-se pelas paredes, espalhando-se pelas almofadas, derramando-se no carpê. Viu quando escapou pelos beirais da porta.

Calou a TV, mas o mundo virtual escapou da tela e as vozes foram ficando cada vez mais audíveis em sua mente. Calou as redes sociais, pois percebeu que o vírus era também virtual, de modo que foi atingida pelo ódio, pelas contendas, e levantou-se zonza pelos golpes recebidos. Calou a palavra. Silenciou de vez.

Começou a ficar angustiada com a solidão, pois o esposo nunca vinha. E, por um surto de segundos, esqueceu que ele nunca viera, pois nunca mais se entregara ao amor. O amor é para tolos, decidiu depois da última espera, depois da última morte de sentimentos. 

O passar dos dias em isolamento aproximou desavisados e revelou verdades dissimuladas. O álcool entrou nas casas, entrou ainda em maior quantidade em goladas, subiu enlouquecido em mentes já transtornadas. À certa altura, as paredes não mais sussurravam, mas deixavam escapar gritos ensandecidos do casal do quarto andar. Pensou ter ouvido um pedido de socorro, mas convenceu a si mesma que estava ouvindo demais. Quem sabe um grito abafado? Devia averiguar? Sim, questionou-se, mas temeu que o vírus pudesse invadir ínfimas brechas e calou a voz que quis clamar por justiça.

O isolamento não acabou, mas a vizinha sim, sufocada por seu agressor. Desconfiou pelo movimento no prédio, confirmou pela circular por debaixo da porta, a que se abaixou para ler com medo de tocar o papel. Caminhou de um lado para outro e correu lavar as mãos. A partir daquele dia, as paredes sussurravam sangue em seu ouvido, e lavava as mãos constantemente. Covarde, dizia-lhe uma voz latente no seu silêncio. Calou a consciência e foi lavar as mãos outra vez. Podia ter agido, mas não agiu, gritaram as paredes. Podia ter sentido, mas não sentiu. Calou a empatia. E foi novamente lavar as mãos.

Nesse meio tempo, não soube mais do vizinho do andar de baixo. Era um rapaz solitário, esquisito, que ela evitava. Ele talvez estivesse tão sozinho quanto ela, pensou, mas teve preguiça de carregar mais um peso. Calou a voz da solidariedade e ouviu apenas um estampido.

Não soube de mais ninguém, esquecia-se das refeições, seus raciocínios eram inexatos. Há quanto tempo estava trancada mesmo?, ela às vezes se perguntava. E por quê? Não sabia quanto tempo se havia passado, mas compreendeu que ninguém dela se lembrara. Pensou que, um dia, esqueceriam a vizinha morta também, pois viriam outras, e outros agressores e outros gritos sufocados, transformados em silêncio. Lembrou-se do jovem solitário que logo também passaria apenas a fazer parte das estatísticas. Lavou as mãos com muita força de dessa vez, e a água quente fez com que a pele descamasse, como ela própria se sentia descamando em partículas de si mesma se perdiam todos os dias. 

Já não sabia por que estava isolada. E, por isso, desceu em direção à rua. Antes de alcançar a porta do prédio, lembrou-se do senhor que morava sozinho no primeiro andar. Parou em frente à porta, fez menção de bater, mas acovardou-se em sua egoísta platitude. E calou a oportunidade de redenção.

A guerra acabou, disse a si mesma, sem saber quem havia vencido, pois não lembrava mais qualquer motivo para tanta escuridão. Não reconheceu aquela cidade, o mundo havia acabado. Não para a humanidade, mas para ela, cuja mente rompeu-se em bolhas fatigantes de distorcidos raciocínios que já não mais se conectavam. Foi apenas mais uma, a quarta moradora de um prédio qualquer, a romper a barreira da sanidade nos desassossegos da quarentena.

Imagem de:  Gerd Altmann por Pixabay 

O conto “Desassossegos da quarentena” foi classificado no concurso Neplli da UFPR de Palmas 2020, e lançado nos livros “Poéticas de SerTão: diálogos literários em sala de aula” e “Literatura em Pandemia“.