“Desconstrução” é um dos meus contos favoritos. Frenético, sem pausa, como nós, mulheres, em nossa inquietação:
Bom dia, por que está se enfeiando tão tarde? Tenho que me desaprontar depressa para um encontro com meu ex-futuro marido, vamos tomar café com bolachas. Pensei que já estivesse separada. E estou, por isso iremos nos ver, estou tão infeliz. Ainda bem que tudo está correndo mal. Acho que agora tudo caminha para o fim, e essas desformas do meu corpo me reconfortam quando me reflito. Desde que desengravidei sinto que desnasço a cada dia. É meia-noite e o sol está mais brilhante do que nunca, sou uma fera desferida no meio do espaço cheio de limo. A vida me desnuda. Esse perfume tem um delicioso cheiro de nada e nada melhor do que não sentir absolutamente nada. Agora caminho para trás e de costas minha imagem no espelho me diz adeus. Que bom, estou chegando… desço as escadas até o último andar e apago a luz para desenxergar melhor. As horas retrocedem depressa, o café está frio, a bolacha está velha e há uma ruga de preocupação no seu rosto. Dessinto-me e desfaço-me a cada encontro. Há um redemoinho em minha cabeça, melhor dispensá-lo depressa, poucas horas para o fim do encanto, o tic-tac do relógio é três vezes mais alto em meu ouvido. Há um homem do outro lado da rua esperando por mim, num prédio antigo de três andares; ele mora no terceiro e tem-se que subir de escadas. Agora ele me desobserva da janela, cansado de me perder todos os dias. Vejo-me subindo as escadas, estou de longo, mas o prédio está na contramão e por isso me desaproximo. Corro para casa e chego afobada novamente de frente para o espelho. Que alívio, eu ainda estou ali, de costas para mim.
Livro Taça Escarlate – Luciane Monteiro